
Depois de uma graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um mestrado na Universidade de Osaka, um ano de pesquisa na Universidade de Ryukyu, em Okinawa e a habilidade de falar 8 idiomas, com fluência em cinco, o brasileiro Júlio César Pereira está a ponto de desistir da vida no Japão.
Carioca de 46 anos, Júlio vive na região de Kansai há mais de 20 anos. Ele estudou letras em português-japonês na UFRJ na década de 1990 e foi contemplado com três bolsas no Japão. A primeira foi da Fundação Japão, que permitiu que ele conhecesse o país por duas semanas. “Foi quando eu me apaixonei e decidi que queria fazer a minha vida no Japão”, conta.
Durante a graduação, Júlio foi contemplado com uma bolsa de estudos de um ano na Universidade de Ryukyu, em Okinawa. Com a bolsa do Ministério da Educação (MEXT), aperfeiçoou o japonês e o inglês no ano de 1994. Em 1998, depois de formado na faculdade, ganhou mais um incentivo do governo japonês: uma bolsa de mestrado na Universidade de Osaka. O brasileiro se tornou mestre em japonês e sociolinguística em 2002 e em 2004, caiu no mundo do subemprego no Japão.
“Era tudo maravilhoso enquanto eu estava estudando. Quando entrei no mercado de trabalho, descobri a realidade do Japão. São quase 20 anos de busca por um emprego qualificado e efetivo, mas só consigo trabalhos temporários, contratos curtos e sem estabilidade. O período mais estável que eu tive foram os quatro anos em que trabalhei na Apple”.
O brasileiro chegou a atuar como professor de português na Universidade de Quioto, mas acabou saindo pela renda insuficiente e por não ter sido efetivado. Júlio tem fluência em japonês, alemão, inglês e espanhol. É um estudioso entusiasta do mundo das línguas, com capacidade de comunicação também em francês, mandarim e coreano.
Através de seu canal no Youtube, o “Gengotaku”, o carioca divide com seus 40 mil seguidores a rotina no Japão e os estudos de novos idiomas.
Em 2018, ele chamou atenção da mídia japonesa por sua capacidade de falar idiomas. Na época, atuava como taxista na cidade de Osaka.
Os holofotes, no entanto, não renderam nenhuma proposta de emprego que contemplasse suas qualificações. Desde então, o brasileiro já passou pelo táxi em Quioto e por duas empresas de idiomas com contratos temporários para projetos em andamento.
Durante vários meses, o carioca tem tentado as vagas divulgadas pelo Centro de Serviços de Emprego do governo japonês (Hello Work), mas tem se deparado com a má vontade de empresas, discriminação por ser estrangeiro e muitas portas fechadas.

DISCRIMINAÇÃO LABORAL
Depois de se candidatar para mais de 10 vagas, vasculhar sites de empregos e ouvir desculpas de recrutadores, Júlio chegou no limite da decepção. A gota d’agua foi uma vaga encontrada em um buscador de empregos no Japão, para uma função relacionada ao comércio exterior de uma empresa japonesa na cidade de Osaka.
Apesar de ter todas as qualificações para o emprego, a descrição da vaga (em japonês) dizia que não aceitavam candidatos estrangeiros.
“Eu vi aquela vaga e confirmei o que já pensava, que o problema maior é a discriminação. Eu questionei o motivo de não aceitarem estrangeiros, recebi uma desculpa de que, por causa do coronavírus, só estão aceitando candidatos japoneses. Não fez nenhum sentido”.
Júlio expôs a situação em um vídeo em seu canal (confira aqui) e recebeu mais de 19 mil visualizações, além de muitas mensagens de apoio e lamentações. Dias depois, a vaga saiu do ar. A discriminação de estrangeiros em vagas de emprego é proibida pela lei japonesa de estabilidade ao trabalho.
QUALIFICAÇÃO E IDADE
Estar qualificado demais ou ter passado dos 40 anos, são questões que atingem o brasileiro e causam indignação. “Já ouvi falar muito sobre a questão da idade, mas é bobagem. Eu enfrento este problema desde que era novo, desde que terminei o mestrado. Já passei a metade da minha vida aqui, sempre em subempregos e não sou o único”, lamenta.
Em um dos empregos mais recentes que conseguiu, em uma empresa de tradução com contrato de apenas quatro meses, o brasileiro conta que se deparou com outro caso. “Tive uma colega formada na Universidade de Kobe, com mestrado em direito e na mesma situação, rodando de emprego em emprego, sem conseguir um trabalho estável e qualificado”, diz.
Ter qualificações demais também pode ser uma das causas, já que um mestrado, por exemplo, exige melhores ofertas de salário. No entanto, o brasileiro tem enfrentado dificuldades que apontam para a discriminação.
“Quando levo uma vaga ao centro de empregos e eles consultam o recrutador por telefone, na minha frente, eu vejo que está tudo bem quando eles dizem que sou homem de 46 anos. Quando falam que sou estrangeiro, a conversa muda. Alguns dizem que não aceitam estrangeiros, outros começam a exigir qualificações que não estão na vaga, procurando uma forma de me descartar”, explica.
TÁXI POLIGLOTA
A falta de oportunidades no Japão levou o brasileiro ao táxi em 2016. Na época, Júlio tirou as habilitações necessárias e conseguiu passar em uma prova complexa, que comprovava o conhecimento no mapa da cidade de Osaka.
O táxi começou como uma promessa de serviço estável, com salário fixo e a possibilidade de utilizar um pouco dos idiomas que tem domínio. Na prática, no entanto, não foi tão vantajoso.

“O táxi foi algo inevitável na minha vida, mas não era aquilo que eu queria. Tive poucas oportunidades de atender passageiros estrangeiros. Sai em 2018 e voltei a buscar emprego, como não apareceu nada em três meses, fui para o táxi em Quioto, pensando que atenderia mais estrangeiros por ser uma cidade turística. Também não funcionou e sai de novo”, conta.
Júlio ficou conhecido depois que um repórter do jornal Mainichi pegou o táxi o se impressionou com as habilidades linguísticas do brasileiro. Ele participou de entrevistas de emissoras japonesas na época, como a Asahi, MBS, Bs Japan e a emissora estatal NHK.
FUTURO NA EUROPA
Enquanto busca por um trabalho no Japão, Júlio tem tentado oportunidades em países europeus e tem percebido uma acolhida melhor, apesar das dificuldades de resolver questões como o visto e a mudança com a esposa japonesa e os dois filhos.
“Enquanto os japoneses me descartam, estou em contato com recrutadores da Irlanda, de Londres e Malta. Quase aceitei uma proposta na Irlanda, mas eles dariam visto apenas para mim e preciso pensar na minha família. Em Malta, estou na fase final de uma candidatura e o único empecilho é a escola dos meus filhos. É triste, depois de tanto investimento, mas não há oportunidades para mim no Japão”, diz.
Depois de três bolsas do governo japonês, o brasileiro calcula que o Japão investiu mais de US$ 110 mil na educação dele, mas não houve retorno na sociedade.
“O que mais me incomoda é exatamente isto. Eles investiram em mim e vão deixar que outro lugar usufrua das minhas qualificações. Eu sou de origem humilde, jamais teria vindo ao Japão se não fosse pelas bolsas. Sou muito grato ao Japão por isso, mas hoje me sinto como um homem traído. Sinto que o sonho virou pesadelo”, desabafa.