
A pandemia do coronavírus afetou a economia mundial e no Japão, onde muitas famílias brasileiras contam com o sustento do trabalho nas fábricas, houve demissões, dias parados e redução do tempo de serviço em muitos locais.
Algumas famílias que chegaram no fim do ano passado do Brasil, com uma promessa de emprego e uma vida melhor, tiveram que enfrentar demissões, ordens de despejo e dívidas com empreiteiras.
Em entrevista ao Japão sem Tarjas, coordenadores do grupo Ação Solidária Japão, que recebe doações de alimentos para entregar cestas básicas aos necessitados, contaram sobre a situação desesperadora que muitas famílias brasileiras estão enfrentando no momento.
“Tem muitas famílias sem emprego e sem renda em casa. Há pessoas que não estão recebendo a porcentagem pelos dias parados e outras que não trabalharam nenhum dia no mês e estão recebendo ¥60 mil ou menos, o que não cobre nem o aluguel”, conta Nelice Hirata, coordenadora que atua em Toyokawa, na província de Aichi.
LUTA DIÁRIA
A brasileira Alice Tanabe*, de 26 anos, se mudou da província de Aichi para Gifueste ano em busca de uma vida melhor. Mãe de quatro crianças, de 7, 6, 2 anos e um bebê de um mês, Alice conta que decidiu pela mudança da família, pois o marido tinha um emprego certo em uma fábrica em Gifu.
“Em Aichi eu trabalhava em restaurante, meu marido era autônomo e vivíamos com as contas atrasadas, ou pagávamos as contas ou comprávamos o básico para a casa. A situação já estava difícil com três crianças e então eu descobri que estava grávida. Em Gifu teríamos melhores condições”.

No entanto, a pandemia chegou de repente e devastou os planos da famíliade se reerguer financeiramente.
“Meu esposo trabalhava todos os dias no começo, fazia até três horas extras. Em março o serviço começou a cair e em abril, já não tinha um salário que daria para pagar as despesas. Ele recebeu só ¥60 mil”.
Alice e o marido se viram em uma situação cada vez mais difícil, com as contas batendo na porta e as necessidades urgentes das crianças.
“O serviço foi caindo mais. Tinha semana que ele trabalhava três dias e folgava dois, e dias em que voltava na hora do almoço ou ficava a semana toda em casa. Em maio, quando a minha caçula nasceu, o trabalho ficou ainda mais fraco. Foram duas semanas em casa a mando do chefe e em junho, ele trabalhou só cinco dias”, lamenta.
Como está em um apartamento alugado pela empreiteira, a família recebe os descontos do aluguel e das despesas da casa no salário. “Como meu esposo está no vermelho, estamos devendo ¥60 mil para a empreiteira”, diz.
A família de Alice precisou da ajuda de três cestas básicas nos últimos meses e conta com a esperança de que o serviço irá melhorar em breve.
Enquanto isso, o casal tentou o benefício social (seikatsu hogo) na prefeitura, mas não conseguiu por ter carro, o que não é permitido ao beneficiário.
“É muito complicado, pois o carro é o nosso sustento. Eu estou muito preocupada. Meu marido consegue ser mais calmo e positivo, ele fala para mim que nós temos que viver um dia de cada vez. Eu sei que preciso ser forte pelos meus filhos”.
Na cidade de Toyohashi, a brasileira Célia Nakamura*, de 52 anos, também está enfrentando dificuldades financeiras desde o início da pandemia.
Célia conta que trabalha há oito anos na mesma fábrica e não foi demitida, mas está com pouco serviço desde abril.
“Era para ser apenas uma semana parada, mas acabaram se tornando três meses. Na última semana eu voltei, consegui trabalhar todos os dias, mas nessa semana serão só dois dias”, lamenta.
A brasileira tem se virado para pagar as contas básicas com a porcentagem obrigatória que recebe pelos dias parados. Em um momento mais difícil, teve que contar com a ajuda de uma cesta básica.
“Por causa da ajuda de ¥100 mil do governo, eu consegui pagar as despesas. A expectativa agora é que o serviço melhore em setembro. Estou preocupada, não sei como vai ser até lá”, desabafou.
AÇÃO SOLIDÁRIA
O grupo Ação Solidária Japão é formado por 14 coordenadores e 37 voluntários espalhados pelo país.
Com cinco anos de atuação, o projeto iniciou com nove amigos que faziam o trabalho voluntário de forma isolada e se uniram para fortalecer a ação. No começo, atuavam sob o nome de “Aliança Fraterna”, mas decidiram mudar por causa da conotação religiosa.
Hoje, são conhecidos como um grupo de ajuda.

Nelice Hirata, que é uma das coordenadoras da Ação, conta que a pandemia provocou um aumento nos pedidos de ajuda. O grupo costuma doar cerca de 12 cestas básicas por semana, mas há semanas em que até 20 cestas são enviadas.
“Apesar da pandemia ter aumentado o número de cestas básicas que enviamos, a solidariedade aumentou em proporção maior. Temos recebido muitas doações de pessoas da comunidade, apoio de artistas que fazem lives e aumentam a arrecadação”, conta, com alegria.
A ação voluntária, no entanto, é trabalhosa e cansativa, mas compensadora pela oportunidade de levar alimentos as pessoas que estão precisando.
“Ninguém sabe como é ser voluntário. Eu, por exemplo, arrasto um carrinho com até duas caixas de 28kg por quatro quadras até o correio, pois não tenho carro. Há toda a função de fotografar as doações, organizar nas caixas, fazer força para fechar, pesar no balcão e finalmente despachar. Quando o beneficiado pode buscar, nós ganhamos na loteria”, relata.
O grupo costuma receber pequenas doações monetárias, que são utilizadas para pagar as despesas com o frete. “São pequenas quantias que ajudam, mas não são suficientes, gastamos muito do próprio bolso”.
Para Issao Nakashima, que é coordenador da Ação em Hamamatsu (Shizuoka), a situação mudou bastante desde a pandemia.
“Antes os casos eram menos graves, as pessoas perdiam o emprego e logo arrumavam outro. Depois do vírus, muitos não estão conseguindo emprego e ficam sem alimentos”, explica.
Além disso, o grupo tem se deparado com casos extremos, de pessoas enviadas por agências de emprego no Brasil para trabalhar no Japão e que agora estão passando necessidade.
“Atendemos casos muito tristes de pessoas que vieram no fim do ano passado para trabalhar na região de Shizuoka. Eles ouvem que o serviço é de ¥1400 ou ¥1500 a hora, mas quando chegam aqui é menos. O contrato é de dois ou três meses e depois são demitidos. Acabam desempregados e com dívidas de ¥300 mil, referente as passagens e a assessoria”, conta.
OUTROS ESTRANGEIROS
Além dos brasileiros, famílias de outras nacionalidades também estão enfrentando dificuldades no Japão por causa da pandemia.

Makoto Iwahashi, que é consultor da NPO POSSE (Centro de Suporte aos Trabalhadores Estrangeiros), conta que a instituição tem atendido muitos estrangeiros com problemas que envolvem a legislação trabalhista.
“Muitas pessoas foram demitidas por causa do coronavírus. Estamos atendendo trabalhadores que deveriam ter entrado no sistema de seguro-desemprego, mas por serem estrangeiros, há empresas que não cadastram”, relata.
A entidade chegou a receber pedidos graves de ajuda nos últimos tempos e tenta encaminhar esses estrangeiros aos serviços sociais ou jurídicos.
“Há casos de pessoas que tiveram que sair de suas casas e estão morando na rua. Já recebemos consultas de um vietnamita e um nigeriano nessa situação, utilizando o Wi-Fi de lojas de conveniência para pedir ajuda”.
Segundo Iwahashi, os estrangeiros com visto permanente ou casados com japoneses conseguem o benefício social(seikatsu hogo), mas pessoas com visto de trabalho, estágio ou estudo, ficam de fora do sistema.
“Eles não recebem ajuda mesmo que só tenham uma moeda de ¥100 na carteira. O governo precisa garantir o mínimo para a sobrevivência dessas pessoas, sem considerar a nacionalidade. Tentamos alertar e pressionar através dos meios de comunicação”, diz.
- Nomes trocados para proteger as identidades dos entrevistados.
(Matéria publicada 21 de julho de 2020)