Abandono de lixo e miséria: um lado do Japão que poucos conhecem

Paredão onde um grupo de mendigos se instalou em Nishinari, na cidade de Osaka (Foto: Ana Paula Ramos)

Quem não fica espantado ao ouvir falar de abandono de lixo ou miséria no Japão? O país carrega uma fama sólida de limpeza, organização, igualdade social e educação. É essa a imagem que fica gravada na mente dos turistas ou de quem assiste reportagens comumente veículadas sobre o país.

Quem vive ou já viveu o dia a dia, no entanto, está acostumado com cenas que eventualmente aparecem e chamam atenção. Basta observar os canteiros das estradas e as praias para ver que, sim, tem lixo abandonado no Japão e não é pouco.

Outra questão que costuma supreender é a pobreza. Por ter uma baixa taxa de desemprego e uma sociedade menos desigual, são poucas as regiões nipônicas em que a miséria brota aos olhos dos visitantes.

Em uma passagem recente pela cidade de Osaka, fui surpreendida com uma cena que nunca vi antes no Japão. Um canteiro enorme na região de Nishinari (próximo a Estação de Shin-Imamiya) com acúmulo de pertences maltrapilhos e uma montanha de lixo.

De início parecia ser um ponto raro de lixo abandonado, mas se olhar bem, você se da conta: trata-se da moradia de quinze mendigos, que se escondem entre barracas, colchões improvisados, lonas e guarda-chuvas abertos.

A cena me fez recordar de um incidente no qual tomei conhecimento quando ainda vivia em Osaka, há cerca de três anos. Em uma área não muito longe dali, entre o Parque de Tennoji e a região de Shinsekai, havia um espaço em frente à banheiros públicos, que servia de moradia para algumas dezenas de mendigos.

Na época, os moradores de rua se acomodavam sobre camas de papelão e o capricho chamava atenção de quem caminhava por ali. Os pertences ficavam organizados, as vezes era possível vê-los sentados em rodinhas, jogando conversa fora. Apesar das adversidades da vida, eles pareciam bem acomodados onde estavam.

O lugar que os moradores costumavam ficar em Osaka, proximo ao Zoológico e o Parque de Tennoji. (Foto: Ana Paula Ramos)

Porém, naquela época, bilhetes colados em postes indicavam que a prefeitura local iria construir um portão em frente ao espaço onde os moradores de rua ficavam. A ideia era fechar o portão depois das 22h e os sem-teto seriam obrigados a sair dali. O caso gerou um grande impasse. Grupos humanitários protestando contra as medidas da prefeitura e alguns moradores locais defendendo que os mendigos deviam mesmo procurar outro lugar.

Uma reportagem do Jornal Sankei de 2016 foi certeira ao trazer um especialista que deu a real sobre o assunto, dizendo que a prefeitura só queria mesmo dispersar os mendigos e deixar a região parecendo harmoniosa e bonita aos olhos dos visitantes.

E nesta viagem recente, caminhando em frente ao paredão de lixo, logo caiu a minha ficha: revoltados, os moradores de rua resolveram se aglomerar naquele canto e não deixaram barato. Estão pedindo ajuda através de placas em inglês e uma das mensagem no idioma internacional é clara: “é esta a hospitalidade que o Japão dá aos pobres”.

Placas em inglês tentam alertar os visitantes sobre a situação dos mendigos em Osaka (Foto: Ana Paula Ramos)

MENDIGOS EXPULSOS

Depois de ver aquela cena, a história ficou martelando na minha cabeça e tomei uma decisão. Na manhã de 30 de janeiro, meu último dia em Osaka, resolvi comprar uns onigiris na loja de conveniência e ir conversar com os moradores de rua.

Era uma manhã fria e lá fui eu com a minha sacolinha: três onigiris, uma água e uma garrafa de chá. Esperava encontrar algumas pessoas por ali, mas avistei apenas um senhor sentado em uma cama improvisada entre as barricadas de lixo. Ele me recebeu sorridente quando perguntei se gostava de bolinhos de arroz. Agachei ao lado do colchão e coloquei os alimentos sobre a lona.

Takahiro*, de 61 anos, já está há 20 anos nas ruas. Nos últimos dois anos, tem vivido naquele canteiro. Não fiquei nem um pouco surpresa quando ele confirmou minhas suspeitas.

Realmente estava acomodado naquele lugar como resultado de ter sido expulso do local onde a prefeitura construiu o portão. Ele contou que, infelizmente, talvez tenha que sair dali com os companheiros em breve. “No dia 9 de fevereiro vão decidir no tribunal se podemos ou não ficar aqui”, disse, segurando um dos onigiris.

“E você não está preocupado? Para onde vai ir se tiver que sair daqui?”, eu perguntei, mais preocupada por ele do que ele mesmo. O senhor sorriu e balançou a cabeça. “Eu não. Nem estou pensando nisso, se tiver que sair, na hora eu decido”, disse simplesmente.

ABANDONO DE LIXO

A região de Nishinari em Osaka é considerada um dos locais mais perigosos e pobres do Japão. Ali a fama é de ser o bairro por onde circulam os usuários de drogas, membros de grupos mafiosos, criminosos de todos os tipos e os moradores de rua.

Aquele canteiro não é o único onde o acúmulo de lixo chama atenção. Basta andar pelas ruelas para ver, aqui e ali, amontoados de pertences imundos e abandonados, no meio de sacolas e lixo plástico.

Lixo abandonado nos arredores da Estação de Shin-Imamiya em Osaka (Foto: Ana Paula Ramos)

E este não é o único ponto no Japão onde podemos ver lixo jogado nas ruas.

O problema é bastante visível em algumas áreas rurais, portos, praias, rios, alguns parques e canteiros de estradas. Vemos que muito lixo foi deixado nestes lugares por pessoas sem educação, como embalagens de bentô (marmitas), garrafas plásticas e as vezes até com urina dentro, que alguns motoristas têm o hábito de jogar pela janela do carro.

Em agosto do ano passado, iniciei um projeto de limpeza de praias depois de me revoltar contra o lixo na Praia de Maisaka, que era perto de onde eu vivia em Hamamatsu (província de Shizuoka).

A ideia se transformou no grupo “Por que você também não faz – Japão” e como resultado, quatro mutirões foram realizados em duas praias na região durante a segunda metade de 2020.

Cada mutirão rendeu cerca de 30 sacos, 50kg a 70kg de lixo recolhido durante uma hora por cerca de 10 pessoas.

Foto do último mutirão na praia de Kosai, em Shizuoka

Por isso gosto de deixar bem claro. Tem lixo nas praias do Japão, sim!

Isto significa que o povo japonês, na verdade, é mal educado e abandona lixo na praia? Não exatamente. Eu acho que isso significa, em primeiro lugar, o óbvio: o problema do lixo é mundial, não se resume aos países subdesenvolvidos e a quantidade de lixo nos oceanos é tanta (14 milhões de toneladas de acordo com um estudo da agência científica nacional da Austrália) que o mar se encarrega de deixar o lixo em praias do mundo todo.

Isto é verdade, mas não é tudo. Depois de uma experiência de mutirões, principalmente durante os meses de verão, pude perceber que, mesmo entre os japoneses, há pessoas que abandonam o lixo na praia, sim.

Jovens? Pescadores? Surfistas? Eu não sei. Porém, nas minhas andanças recolhendo lixo, sozinha ou em grupo, encontrei restos e embalagens de fogos de artifício (um hábito dos japoneses no verão) e muitas garrafas plásticas de chá, água, café gelado, limpas e sem danos em seus rôtulos. Lixo que com certeza foi deixado ali horas ou dias antes.

CONSCIÊNCIA

Acho importante falar sobre este assunto, pois percebi entre as publicações sobre limpezas de praias que muitas pessoas não conseguem assimilar o lixo na praia com o Japão. Alguns leitores reagem com estranheza, outros chegam a acusar os estrangeiros de estarem sujando as praias, por não acreditar que um japonês seria capaz, o que é um terrível engano.

A lição que devemos tirar disto é que o lixo está mais presente do que percebemos no dia a dia. Ao ampliar a consciência sobre esta questão, você se dá conta de que o problema é mesmo global e depende de cada um de nós como humanidade melhorar essa situação, buscando soluções para reduzir o consumo de plástico e o lixo no mar.

Lembre-se que a sua parte é aquilo que você é capaz de fazer e que o lixo que não é de ninguém, na verdade, é de todos nós.

Quem está no Japão e quer participar, deixo o link do grupo como recomendação: Por que você também não faz – Japão.

*Nome fictício

Autor: Ana Paula Ramos

Jornalista e escritora, Ana tem sete anos de experiência no Japão, atuando como repórter na comunidade brasileira e como freelancer. Ela é a fundadora do Japão sem Tarjas e criadora do grupo ambiental "Por que você também não faz?". Em outubro de 2020, publicou o primeiro livro, "O Oitavo Andar", um suspense que se passa na cidade de Gramado. Em 2022 publicou o segundo livro, "O Diário da Minha Vida Ingrata", uma fantasia criada a partir de uma história real.

3 pensamentos

  1. Eu sempre recolho lixos deixado na praia quando vou. Uma vez tinha um galão que estava boiando nas ondas e fui buscar para retirar e deixar bem no alto das escadas. Não tinha lixo para colocar o galão (estava cheio de areia dentro, podia tirar tudo, mas…vai saber que há algum bicho morto?). Outra vez, vi um estrangeiro sentado no alto da escada me vendo recolhendo lixos na areia, fez um sinal de aprovação para mim. Não senti lisonjeada, segui recolhendo mais lixos, eu prefiro ter colaboração dele do que aprovação sem ação. Não sou de esperar aparecer esse movimento para acontecer. Simplesmente vou à praia curtir e cuidar com amor à natureza. Somente por amor.

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  2. No Japão ñ existe lixeiras nas ruas, tem pontos de coletas com dias para cada tipo de lixo, a prefeitura da um calendário com as datas e pontos para cada bairro.
    Os lixos nas ruas são de pessoas que não seguem essas regras, não querem fazer a resiclagem correta.

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