
Em setembro de 2020, uma idosa morreu de fome em casa, na cidade de Takaishi, província de Osaka. Ela se chamava Nanami Miyawaki, tinha 78 anos e não foi registrada no nascimento. Aos olhos do sistema japonês, era como se Nanami não existisse.
Nanami vivia com o filho, de 49 anos, que também não tinha registro e foi acolhido em um estado de desnutrição quando a mãe faleceu. Este caso levantou uma importante questão: por que nenhuma ajuda chegou a tempo para esta família?
De acordo com os dados do Ministério da Justiça, até fevereiro deste ano, o governo tinha conhecimento de 881 pessoas não registradas, mas o número pode ser bem maior.
Quando um bebê nasce no Japão, ele deve ser registrado na prefeitura da cidade onde a família reside. Este registro se chama “koseki” e influencia em toda a vida do indivíduo até a morte.
Se por algum motivo os pais não registrarem o filho, a criança não existe do ponto de vista do sistema e passa a viver às sombras, sem poder usufruir dos serviços públicos e básicos.
Embora o Ministério da Educação diga que a escola é direito de todos, mesmo sem registro, há adultos que nunca foram registrados e passaram a infância e a adolescência dentro de casa.
Um japonês que não foi registrado também não consegue fazer o seguro de saúde público, abrir uma conta no banco ou arrumar um trabalho formal. Estes indivíduos caem em um “limbo” difícil de sair, pois as prefeituras não conseguem registrar tardiamente e é preciso providenciar uma série de documentos para provar a própria existência.
A emissora Kansai TV conversou com algumas pessoas que vivem ou viveram nesta situação e mostrou as dificuldades da vida de quem, por algum motivo, acabou de fora do sistema.
Vida fora do sistema

Misa tem 27 anos, vive em Saitama com seus dois filhos e nunca foi registrada. Sua mãe era filipina e sofria violência doméstica. A mãe saiu de casa, fugindo do marido violento e sem se divorciar. Quando estava morando longe do marido, se envolveu com outro japonês, o pai de Misa e então ficou grávida dela.
Por medo do ex-marido, que poderia descobrir caso ela registrasse a criança, a mãe de Misa preferiu não encaminhar o registro quando a filha nasceu. A mãe nunca se divorciou e Misa acabou sendo criada sem registro.
Ela conta que foi inúmeras vezes na prefeitura tentar resolver a questão, pois precisava de um registro de endereço para trabalhar.
“Quando consegui um trabalho eu fui ver os documentos e pedia um registro de residência. Eu expliquei que não tinha registro na prefeitura e eles falaram para eu conseguir o documento e depois entrar em contato novamente”.
Mãe solteira de duas crianças, Misa pensou que precisava registrar os filhos, para que eles não sofressem a mesma situação que ela no futuro.
Quando foi na prefeitura tentar registrar as crianças, também não conseguiu, pois o registro das crianças está ligado ao registro dos pais.
“Eles me falaram que eu precisava me registrar primeiro, pois se eu não tiver um registro, meus filhos também não podem ter”, explicou.
Sem o registro, ela também não conseguiu receber os benefícios destinados às mães solteiras. Há dois anos, também não conseguia arrumar um trabalho fixo.
“Eu fiquei sem dinheiro. Não tinha nem 1 iene na minha carteira. Não podia trabalhar, não podia comer, não podia comprar o que os meus filhos pedem. Eu me sentia um fracasso como mãe”, desabafou.
Ela buscou ajuda com a NPO “Mukoseki no Hito wo Shien suru Kai”, que atua em Nara e presta assistência as pessoas sem registro de família. Depois de duas semanas, Misa conseguiu encaminhar os documentos que tinha e conseguiu o registro de residência sem ter o registro de família.
Era o documento de que precisava para trabalhar. Ela logo arrumou um novo emprego e pode se estabilizar novamente.
Confinamento em casa

Um homem de 30 anos, chamado de “A”, que vive na província de Yamaguchi, também não foi registrado e nunca frequentou uma escola.
Ele passou 28 anos em casa, escondido, sem existir aos olhos do sistema.
Seu irmão mais velho foi registrado, mas “A” ficou de fora, por razões que não foram explicadas na reportagem. Por isso, também não pode fazer um seguro de saúde e não podia frequentar hospitais por causa do custo alto dos tratamentos.
“O pior para mim era não poder ir ao hospital. Eu teria que pagar o custo total por não ter seguro de saúde, e é muito caro, então mesmo que sentisse alguma dor, eu tentava aguentar com analgésicos”, contou.
Para fazer o registro, “A” precisava providenciar documentos que comprovassem sua idade e que provassem que ele não está no registro de família de ninguém.
Ele também buscou o apoio da NPO “Mukoseki no Hito wo Shien suru Kai”. Depois de um ano e meio de assistência, “A” conseguiu se registrar em janeiro deste ano.
Mayumi Ichikawa, líder da organização, conta que o caso de “A” foi rápido. No geral, leva-se mais tempo e é complicado efetivar o registro dessas pessoas.
“Você vai no Departamento de Registro de Residência na prefeitura e então eles pedem para ir no Departamento de Registro de Família. Este departamento também não sabe o que fazer e manda o indivíduo se consultar com o Ministério da Justiça, que também não sabe o que fazer. Falta conhecimento do poder administrativo sobre como lidar com esses casos”, diz.
Para Mayumi, as prefeituras deveriam levar esses casos com muita seriedade, por causa de todas as restrições que o indivíduo é submetido quando não tem um registro.
“Eu queria que eles entendessem que não ter um registro coloca a vida da pessoa em risco. É extremamente grave”, lamentou.
Caso de morte

O caso de Nanami Miyawaki, a idosa que morreu de fome em casa, levantou várias questões. Por que a prefeitura local não tinha conhecimento da existência dessa mulher e de seu filho?
De acordo com a reportagem da emissora Kansai TV, a mulher nasceu no meio da confusão da guerra e acabou não sendo registrada. Sem registro, ela não pode oficializar o casamento, mas morou com o companheiro e teve um filho.
A prefeitura de Takaishi tinha apenas o registro do marido, que estava como se morasse sozinho. O marido, no entanto, morreu cinco anos antes e ela passou a viver sozinha com o filho, sem que a prefeitura tivesse conhecimento sobre os dois.
O filho foi levado ao hospital e contou que as economias da família se esgotaram e como ele e a mãe não tinham registro, acharam que não podiam se consultar na prefeitura, porque não teriam direito a nenhum benefício.
Sem receber nenhuma assistência ou benefício social, Nanami e o filho chegaram em um estado de desnutrição e a idosa acabou falecendo.
Alguns locais do Japão, no entanto, já tomaram medidas para resolver este tipo de situação.
Na cidade de Akashi, em Hyogo, um balcão de atendimento especializado foi montado há sete anos para atender as pessoas sem registro. Os funcionários receberam treinamento e a prefeitura viabilizou o auxílio subsistência (seikatsu hogo) aos não registrados.

“Há muita desinfiormação nas prefeituras em todo o Japão. Os funcionários dizem que não podem fornecer os serviços básicos sem registro, mas não é verdade. É possível garantir assistência pública mesmo se o indivíduo não for registrado”, disse Fusaho Izumi, prefeito de Akashi, para a emissora Kansai TV.
Esta reportagem também está disponível em vídeo:
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