Os filhos que não querem cuidar dos pais idosos no Japão “me maltratava quando criança, hoje é um fardo”

Fotos: Unsplash (imagens ilustrativas)

Cuidar dos pais idosos é uma obrigação natural para qualquer pessoas e no Japão, o senso de responsabilidade é forte, enraizado na cultura do país.

No entanto, nem todo mundo se dedica a esta função e há aqueles que, declaradamente não querem saber de seus pais e tentam se esquivar ao máximo desta responsabilidade.

Kumiko Kanno, uma escritora que publicou livros de não-ficção que tratam temas como sociedade, abandono e solidão, é autora da obra “Sociedade do Abandono Familiar” (Kazoku Iki Shakai), que apresenta casos reais de pessoas que, por causa das experiências do passado, não possuem nenhum remorso quanto ao sentimento de querer abandonar os pais na velhice.

Estas histórias foram publicadas pelo portal President Online no mês passado. Disponibilizamos uma delas aqui, no Japão sem Tarjas

Passado cruel

A própria escritora se identifica com a obra na qual se dedicou. Kumiko contou que não tem boas lembranças de sua mãe. Aos três anos, foi forçada a aprender piano, era vítima de uma violência irracional e ao mesmo tempo sofria negligência dos pais.

Por causa de sua experiência, foi atrás de outras histórias parecidas e encontrou relatos tristes de pessoas que guardam mágoas dos pais, carregam traumas e torcem o nariz para a conta mensal do asilo.

Se pudessem e se fosse socialmente aceitável, essas pessoas gostariam de cortar definitivamente os laços com os pais.

“Os casos mais graves que encontrei são de pessoas que se separaram da influência negativa dos pais por causa dos estudos, trabalho ou casamento. Quando chegou o momento de cuidar da velhice até a morte, essas pessoas sentem que estão caindo mais uma vez no inferno, voltam com as emoções do passado”, explicou.

“Cartas amaldiçoadas”

Photo by Clément Falize on Unsplash

Um dos casos mais marcantes é de Ayumi*, uma japonesa com idade na faixa de 50 anos. Ela teve uma infância difícil por causa da mãe, sofria negligência, violência física e verbal constantemente.

Ainda hoje precisa lidar com um transtorno alimentar, que é consequência das experiências negativas que teve no início da vida. A mãe faleceu de pneumonia no ano passado, mas antes estava em uma casa de repouso na província de Akita, há mais de 500 quilômetros de distância de Kanto, região onde Ayumi vive.

Mesmo com a distância e falta de contato direto, ela sentia que a responsabilidade com a mãe era um fardo no qual precisava carregar mesmo sem querer.

“Todos os meses eu recebia a conta do asilo, fotos e cartas da minha mãe. Honestamente, do fundo do meu coração, eu chamava esses papeis de cartas amaldiçoadas”, confessou.

As cartas que a mãe enviava continham pedidos de coisas como pijamas e roupas íntimas.

“Mesmo quando eu mandava o que ela queria, eu não recebia uma só palavra de gratidão e ela ainda me amaldiçoava nas cartas, por isso chamava assim”, diz.

A mãe arrumava confusão na casa de repouso e ela precisava trocar de instituição. Ayumi é enfermeira, trabalha com idosos e apesar de estar acostumada com o comportamento de pessoas mais velhas, diz que a existência da mãe era apenas um fardo.

Ela conta que chegou a desabafar com o responsável do asilo sobre as circunstâncias pessoais com a mãe, mas ouviu apenas que a idosa falava da filha com orgulho, o que não ajudou a conter suas emoções.

“Sou filha única e não tenho com quem desabafar sobre este sofrimento. Eu me sentia isolada e cada vez que a casa de repouso entrava em contato comigo eu ficava transtornada, tinha palpitações e não conseguia me concentrar no trabalho”, revelou.

Ayumi conta que se sentiu em paz quando recebeu a notícia do falecimento da mãe.

“Eu me senti aliviada. Tive que cuidar sozinha dos trâmites da instituição e do funeral. Uma pessoa comum ficaria muito triste, mas eu se pudesse contar com um serviço que resolvesse tudo para mim, teria ficado agradecida.”

Se pudesse, Ayumi teria cortado os laços com a mãe muito antes de ela precisar de cuidados.

“Acredito que nesta nova geração também há muitas pessoas que, por algum motivo, não querem se envolver com os pais e não é como se você pudesse cortar os laços familiares. Eu acho que se você não quer se envolver, mesmo sendo mãe e filho, não deveria ser obrigado”, sugere.

Kumiko conta que as palavras de Ayumi tocaram fundo no seu coração e a história foi relatada por completo no livro.

“Percebi que nesses casos delicados, mesmo que se esteja fisicamente distante do pai ou da mãe que provocou o sofrimento, a dor de ter que se envolver com os eles é a mesma”, conclui.

*nome fictício
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Autor: Ana Paula Ramos

Jornalista e escritora, Ana tem sete anos de experiência no Japão, atuando como repórter na comunidade brasileira e como freelancer. Ela é a fundadora do Japão sem Tarjas e criadora do grupo ambiental "Por que você também não faz?". Em outubro de 2020, publicou o primeiro livro, "O Oitavo Andar", um suspense que se passa na cidade de Gramado. Em 2022 publicou o segundo livro, "O Diário da Minha Vida Ingrata", uma fantasia criada a partir de uma história real.

7 pensamentos

  1. Meu DEUS!!! Eu amei minha mãe e hoje tenho remorso de de não ter feito MAIS pq eu era muito ocupado, trabalhava em dois ou três lugares pra manter tudo . Hoje, aposentado em 2 universidades, NAO TENHO MAIS MINHA MÃE, pra dar- lhe todos os mimos. O meu pai já era mais distante e nos não tínhamos muito laços de carinho. Mas, tambem o amava. As vezes penso que fui FALTOSO com eles.

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    1. Os homens são tratados diferente porque buscam no filhos a atenção e amor que não tiveram com o marido mas com as.filhas elas descontam nas filhas a suas frustrações e raiva…era a geração de mulheres machistas

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  2. Me identifico com esses casos. Meu pai foi e talvez ainda seja um homem cruel, violento e narcisista. Por causa dele, aos doze anos, eu já pensava em suicídio(que me parecia a única saída daquele inferno). Batia nas filhas e humilhava a esposa. Quando penso na minha infância, não é com felicidade ou nostalgia, mas sim com tristeza e dor. Hoje em dia cortei os laços com ele, mas sei que no futuro, por lei, vou ter que ampará-lo na velhice, e só de pensar fico enojada.

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    1. Exatamente! Não tive infância nem adolescência feliz e sofri todos os tipos de abuso de mãe narcisista e padrasto psicopata. Pelo menos não sou filha única…quero manter maxima distância.

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  3. Sofri minha infância toda sendo a mais velha tinha que tomar conta de 4 irmãos menores fazer as tarefas de casa.
    Meu Pai omisso minha mãe simplória da roça sem.estudo…casei aos 15 anos para fugir de casa.sai de uma prisão para um calabouço.
    Mas quando minha mãe foi diagnosticada com covid estava pra ir para UTI consegui entender que ela era na época uma criança grande aprendendo a cuidar só de 5 filhos e que como eu como mãe tbm cometeu erros achando que estava certa com suas Atitudes.
    Perdoei esqueci…
    Hj minha mãe e minha raiz e olha ela continua a mesma sem muita intimidade comigo..
    Mas eu mudei isto basta.
    Sai

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  4. Só quem passa por este tipo de problema, é que pode entender.
    Não julgue se você não passou por isto e teve a enorme sorte de ter pais amorosos.

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